Vivemos tempos complexos. Mais de oitenta anos depois do início da Segunda Guerra Mundial e ainda confrontados com uma pandemia que tarda em desaparecer, somos agora ameaçados com a guerra em plena Europa, Como no passado fez o nosso mentor Bento de Jesus Caraça num contexto semelhante (ver texto anexo), a Direção da Associação Bento de Jesus Caraça, condena de modo inequívoco a invasão da Ucrânia pela Federação Russa, numa clara violação do direito internacional. Ontem como hoje, defendemos a resolução pela via diplomática e pacífica dos desacordos entre os países. A guerra não é, nunca foi, e nunca deve ser, o modo de resolver os conflitos.
Publicamos de seguida um texto de Bento de Jesus Caraça que nos parece apropriado ao momento que vivemos. Este texto foi publicado num jornal português 14 anos após o fim da 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e menos de 3 meses antes da nomeação de Adolf Hitler como Chanceler da Alemanha. Para sua melhor compreensão relembramos que SDN é a sigla de Sociedade das Nações, a antecessora da ONU. O Congresso de Amsterdão é o Congresso Mundial contra a Guerra, realizado em Amsterdão em Agosto de 1932 e que teve mais de 2000 participantes vindos de 27 países.
A luta contra a guerra[1]
Bento de Jesus Caraça
Um semanário francês publicava, há alguns meses, um desenho que, em síntese feliz, ilustrava o panorama político de então: na clínica do Doutor S. D. N. um doente – o mundo – é examinado pelo médico; este olha com terror para a língua do paciente, uma enorme língua entumescida sobre a qual se vê um canhão, e aconselha os comparsas da clínica que se comprimem à porta – não se aproximem! a língua está carregada!
De então para cá, a situação não se tem alterado nas suas linhas fundamentais, antes estas se têm demarcado com maior intensidade – o doente continua padecendo do mesmo mal, dia a dia agravado, e da boca do médico não mais têm saído do que débeis conselhos gaguejados: cuidado! a língua está carregada! – confissão sarada sua impotência para curar.
Catorze anos após o termo desse acesso de loucura que precipitou a humanidade num abismo de horror, encontramo-nos novamente na iminência de um acesso maior, estamos à beira de um abismo mais fundo. E para esse abismo rolaremos todos se, num esforço colectivo, não nos unirmos para dizer – NÃO! mas dizer – NÃO! com uma vontade firme, aquela vontade do homem forte e consciente que de antemão prevê as consequências e de antemão as aceita em toda a sua extensão e em toda a sua inteireza.
O tomar essa atitude exige, antes de mais nada, um sério trabalho interior, um trabalho de revisão de ideias e de valores morais. E não é sem esforço e sem sofrimento que esse árduo trabalho pode ser levado ao fim; pelo caminho, e por efeito de uma análise impiedosa de todos os factores do problema, aparecerão como devendo ser abandonadas muitas ilusões, muitas ideias que até aí pareceriam fazer parte integrante do nosso ser moral. Pois bem! Que haja a coragem de as abandonar e se ao cabo aparecermos outros homens – tanto melhor!
Mas é só depois de conseguida essa harmonia interior sem a qual é ilusória e inconsistente toda a tentativa de acção, que pode ser útil e profícua a projecção da vontade sobre o meio ambiente. Actuar, sim, mas com um plano; nada de esgrimir contra moinhos; alcançar os pontos de enraizamento do mal; abandonar o trapo vermelho para atingir a mão que o manobra.
Só assim a multidão dos pacifistas deixará de ser, na frase justa de Einstein, um rebanho de carneiros lamurientos num redil. E só assim esse rebanho deixará em breve de fornecer abundante carne para os canhões, esses canhões de cujo fabrico e venda as organizações capitalistas internacionais sabem tirar, com que mestria!, os grossos lucros que lhes avolumam a bolsa.
A luta contra a guerra comporta muitos e variados problemas de ordem prática; é impossível, num artigo de jornal, fazer deles sequer uma enumeração, mesmo incompleta.
Quero apenas referir-me, por agora, a um aspecto da questão – o papel que nessa luta desempenham, ou virão a desempenhar, os intelectuais.
Não é brilhante, está mesmo extremamente longe disso, a sua folha de serviços nesse particular. O exemplo da última guerra é, a esse respeito, esmagador. Salvo um pequeno número de espíritos livres e independentes – Romain Rolland acima de todos – o seu fracasso foi completo. Em vez de lançarem na balança todo o peso do seu prestígio para procurarem evitar o desencadeamento da catástrofe e pôr ordem num caos de loucura, usaram desse mesmo prestígio para activar a fogueira, para aumentar a desordem. Onde deviam elevar-se, aviltaram-se, ao desempenho de uma missão nobre e humana preferiram a traição.
Está, ao menos, a situação mudada no presente? Vêem-se, porventura, sinais claros e precisos de um propósito de resgatar um passado escuro? A verdade deve dizer-se, sempre e acima de tudo, e a verdade é – não! Existem, sem dúvida, núcleos apreciáveis de homens firmes, de “homens de boa vontade” que, na luta contra a guerra, põem o melhor da sua inteligência e da sua actividade – o recente congresso de Amsterdam é disso uma prova bem patente – mas, infelizmente, a maioria, a grande maioria dos intelectuais apresta-se para uma nova renegação do espírito. Se uma guerra estalar, e nunca estivemos tão perto dela, veremos de novo surgir, por esse mundo, milhares de fáceis heróis de escrevaninha, a bolsar as mesmas torrentes de mentiras que levem à frente da batalha – os outros… e lhes assegurem a eles cómodas situações à retaguarda.
O mundo está, como estava em 1914, governado por homens inferiores, caricaturas de homens, e o que eles governam não é uma sociedade humana – é uma caricatura de sociedade humana.
E será assim, enquanto homens novos não tomarem a direcção do mundo para fazer dele uma sociedade de homens livres.
Que todos se apercebam bem disto – no momento que passa, a trincheira da luta pela Humanidade é a trincheira da luta contra a guerra. É a hora de falar claro e de cada um escolher a sua posição.
A minha está escolhida há muito tempo.
[1] Texto publicado no Semanário Liberdade nº 181-182, de 11 de Novembro de 1932