Comemorar Abril em 2020 na ABJC



Celebrar Abril hoje é inspirar-nos no 25 de Abril de 1974, refletir sobre os seus valores e aplicá-los no presente visando o futuro. Porque os valores de Abril – liberdade, cooperação, solidariedade, generosidade e democracia – são intemporais como o foram as nossas motivações: terminar a guerra, alcançar a paz entre os povos, criar condições para que cada um possa realizar-se e ser feliz, viver na sua pátria se o desejar e que a sua opinião conte nas decisões que lhe digam respeito.


O 25 de Abril é um marco singular na história portuguesa e na história dos povos, pela forma como foi concretizado, pelas ideias e valores que difundiu, pelas rupturas que provocou com o mínimo de violência e o máximo de participação popular. As ruturas nas dimensões cultural e estética projetaram mundialmente a revolução portuguesa. Portugal e os portugueses inscreveram o 25 de Abril na História dos povos.

O 25 de Abril tornou-se um fator de identidade portuguesa, valorizou o ser português. Isso sentiu-se na forma vibrante como as comunidades de emigrantes na Europa e na América aderiram, reencontrámos o nosso caminho de ligação e encontro de diferentes povos e culturas. Ser português passou a ser positivo e motivo de “orgulho”.


Um processo de derrube da ditadura e construção da democracia como o 25 de Abril não foi prevista pelos teóricos das revoluções nem pelos movimentos e organizações da resistência ao fascismo. Porém, se lermos e estudarmos Bento de Jesus Caraça e Gramsci entenderemos melhor o que se passou, como se passou e porque adquiriu o 25 de Abril a projecção mundial que efectivamente teve e continua a ter.


O 25 de Abril juntamente com as condições a seguir indicadas é uma solução da equação geral com que BJC formulou o devir histórico. Escreveu ele:


Creio que essa lei […à qual se subordine todo o desenvolvimento que a história nos apresenta ao longo do extenso caminho percorrido] existe e que pode formular-se, pouco mais ou menos, nos seguintes termos: no seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários -o individual e o colectivo – de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio – o individual – chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no segundo.


As condições aos limites são o movimento internacional de emancipação colonial iniciado após a Segunda Guerra Mundial, a crise do petróleo de 1972-73, a ditadura salazarista e o esforço de treze anos de guerra colonial em três teatros de operações.


A formulação de BJC tem dois pressupostos a estabelecê-la, o primeiro dos quais é:


O poder revolucionário duma ideia mede-se (…) pelo grau em que ela interpreta as aspirações gerais, dadas as circunstâncias do momento em que actua.


O segundo é a tese mais cara a BJC – a da necessidade de despertar a alma colectiva das massas (reivindicando, simultaneamente a cultura para a colectividade inteira), formulada em face das suas argutas constatações:


Mas, mesmo nesses períodos de tranquilidade [onde as sociedades parecem ter encontrado uma posição de equilíbrio fecunda para o progresso espiritual e material], as forças íntimas que trabalham a estrutura social não estão em repouso. Não é difícil discernir as correntes que carreiam incessantemente os materiais para a nova fase de luta. A agitação do organismo social não é menos viva, simplesmente ela exerce-se em camadas mais fundas, interessando os alicerces e deixando provisoriamente de parte a epiderme. Por isso, em todas as épocas de transformação nas relações sociais se encontram sempre pessoas a quem os acontecimentos surpreendem e que até ao fim negam aquilo que é a própria evidência.


O Movimento dos Capitães, a que se juntaram o Movimento Democrático da Marinha e camaradas da Força Aérea sob a designação de M.F.A. – Movimento das Forças Armadas verifica a tese de BJC:


  • Conjugou a acção militar de derrube da Ditadura com um programa político próprio que apelou à congregação das forças populares para a instauração da Democracia;

  • Ultrapassou os aspectos corporativos e agiu no plano político em consonância com a sociedade civil;

  • Conduziu um processo intrinsecamente democrático no seio de um sistema militar hierarquizado, ademais em ditadura e com uma guerra colonial às costas;

  • Não podendo deixar de fazer um golpe militar concebeu a sua estratégia e o seu Programa político de forma a criar condições para a participação popular e assim superar não só o própria acção militar como combater o golpismo do General Spínola.


Os jovens militares fizeram convergir diferentes conhecimentos e capacidades: militares, organizacionais, politicas, cientificas, culturais, artísticas e estéticas, que lhes permitiu iniciar um processo de grande originalidade de transformação da sociedade portuguesa.

O processo de amadurecimento e preparação da acção militar foi relativamente rápido os jovens militares tem consciência do seu poder e da sua posição na estrutura militar e sociedade portuguesa; foi um pouco mais difícil e longo o processo de capacitação e formação em diferentes áreas do conhecimento, das ciências, das artes e da cultura que nos levou à elaboração do programa politico, a luta e dimensão cultural da resistência à ditadura foi particularmente importante e muito significativo o papel e a influência dos escritores, dos artistas, quase tanto quanto a guerra colonial e as difíceis condições de vida do povo que obrigavam à emigração em massa.

No âmbito da Marinha o processo de maturação cultural e politica que começou de forma organizada em 1970 passou pela leitura e estudo das lições da história, dos escritores do neo-realismo – com especial destaque para Alves Redol – pela leitura de vários livros da colecção Cosmos e de Bento de Jesus Caraça – naturalmente os Conceitos Fundamentais da Matemática – e de um curso de materialismo dialético, isto sem discriminação social ou de classes, este processo de forte natureza cultural abrangeu oficiais, sargentos, marinheiros e civis.

O aparecimento repentino do MFA à luz do dia ilustra e enriquece a análise de BJC: não se enquadrou em nenhuma das orientações ou previsões de teóricos das revoluções e das forças políticas à época; não se tratou nem de as Forças Armadas fazerem um golpe de Estado, nem de um levantamento popular; o MFA e o seu Programa foram uma surpresa completa, nacional e internacionalmente (e até para muitos dos seus intervenientes…). Os libertadores surgiram de um dos pilares do regime ditatorial derrubado, não para exercerem o Poder, mas para devolverem ao povo a liberdade de escolha da forma como desejam viver.

Naturalmente que esse processo têm de ser creditado também à longa luta da Oposição contra a Ditadura, de que o 3º Congresso de Aveiro foi um marco muito importante.

Por seu lado, o Programa do Movimento das Forças Armadas satisfaz integralmente o primeiro pressuposto atrás enunciado, como se tornou irremediavelmente evidente logo uma semana depois, naquele 1º de Maio de 1974 e nos acontecimentos que se seguiram durante os 500 dias de Abril. Os militares do M.F.A. escreveram um programa político em perfeita sintonia com as aspirações do povo: paz, liberdade, melhores condições de vida e trabalho, enfim democracia. Este programa significava que o M.F.A. estava com o povo e o povo respondeu: “O povo está com o M.F.A.”. Esta dinâmica de grande originalidade deu início a um profundo processo de transformação da sociedade portuguesa.



(Q.E.D)



O pós 25 de Abril também verifica a formulação de BJC feita quatro décadas antes:


A vitória de uma ideia revolucionária significa, na época em que se dá, um acomodamento momentaneamente estável, mais perfeito que o anterior, entre as forças em presença; significa que se deu um novo passo no sentido de subtrair o colectivo à tirania do individual; sentem-no bem as massas que, nessas épocas de comoção dos fundamentos da sociedade, se lançam, numa explosão de entusiasmo, ao assalto do corpo decrépito e parasitário que sobre elas vive.

Mas a sua falta de preparação cultural, o não reconhecimento de si mesmas como um vasto organismo vivo e uno, torna-as incapazes de levar a sua obra mais além da destruição do passado; impossibilita-se de proceder à construção da ordem nova que a sua revolta preparou.

E então dá-se, no dia seguinte ao do triunfo, a sua abdicação, num grande gesto de renúncia – essa obra de reconstrução, é um novo grupo, uma nova classe, mas não a colectividade inteira, que a vai empreender sob a égide da bandeira que presidiu à vitória.

E o futuro… como que perguntou há dias João Caraça para em seguida responder:


Teremos de começar hoje mesmo a construir as novas instituições que farão a humanidade evoluir, aproveitando a profunda transformação no domínio da comunicação que estamos a viver.

Atrevemo-nos a avançar que é urgente repensar a constituição e o funcionamento do Estado. O Estado republicano tem vindo a ser sistematicamente capturado pelos mercados em escalas crescentes. Da pandemia que vivemos emergem sintomas de grave desarticulação e de forte desregulação no seu seio, que são, aliás, objectivos declarados da finança internacional. Em grande medida, o Estado actual não está a dar resposta às necessidades e aos anseios das populações – não está garantidamente a dar no campo da cultura integral do individuo na justa definição de BJC.




Lisboa, no 25 de Abril de 2020

Manuel B. Martins Guerreiro
Mário J. B. Simões Teles
ABJC