INTERVENÇÃO DE JOÃO DOS SANTOS CARAÇA NA SESSÃO DE EVOCAÇÃO DE BENTO DE JESUS CARAÇA REALIZADA EM 19 DE FEVEREIRO DE 2015 NA FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Para quem não me conhece, o meu nome é João dos Santos Caraça, sobrinho do Professor Bento de Jesus Caraça, com quem vivi até à data da sua partida, aos 47 anos, tendo na altura 17 anos. Aquilo que vou mencionar nestas poucas palavras são algumas coisas passadas na infância de Bento de Jesus Caraça que me foram contadas pelos meus avós, seus pais, outras são da minha vivência pessoal, pois tive o privilégio de acompanhar o meu tio nalguns dos seus passeios no Alentejo (até ao Ramo Alto que ele tanto gostava) e viver na sua casa de Lisboa.
Em 25 de junho de 1948, às 15 horas e 36 minutos morria alguém em Portugal, figura de ciência, das mais cultas e humanas do século XX. Bento de Jesus Caraça nasceu a 18 de abril de 1901 em Vila Viçosa numa dependência modesta do Convento das Chagas onde a Casa de Bragança alojava alguns dos seus empregados. O meu avô, João António Caraça, pai de Bento Caraça trabalhava nessa época na Casa de Bragança, como maioral das parelhas. Mas dois meses depois do seu nascimento, seu pai entrou como feitor ao serviço do lavrador Sr. Raul Albuquerque na Herdade da Casa Branca, na freguesia de Montoito, levando toda a família.
Em dada altura passou pela herdade, em busca de trabalho, um homem chamado José Percheiro que sabia ler e escrever e tinha consigo um livro de leitura escolar, sendo admitido entre os moços da lavoura. Este trabalhador sobressaía entre os demais e o miúdo Bento Caraça, com cerca de cinco anos, ficava maravilhado com a arte de ver traduzir em sons e em ideias os misteriosos caracteres negros impressos no livro. Logo na primeira lição que teve ficou conhecendo o abecedário e em pouco tempo lia correctamente todo o livro. Mas o José Percheiro, como era trabalhador adventício, não tardou muito em abalar, de novo com rumo desconhecido. Porém, deixou ao seu pequeno “discípulo” o livro de leitura, não deixando de aconselhar a mãe a mandá-lo para uma escola, porque no seu entender ele não era uma criança como as outras.
O pequeno Bento de Jesus Caraça passava horas agarrado ao livro, relendo-o constantemente, a ponto de o decorar. Devemos lembrar o que seria ir e frequentar uma escola primária nos primeiros anos do século XX, para quem vivia num monte alentejano, afastado alguns quilómetros da escola mais próxima, sem meios de transporte e disponibilidade económica. Como exemplo, recordo também o passado de meu pai, Francisco José Caraça, que sendo mais velho três anos que o seu irmão Bento, nunca frequentou uma escola primária, mas aprendeu a ler e a escrever enquanto trabalhava como ajuda a guardar o rebanho de ovelhas, ou a vara de porcos, na dita herdade da Casa Branca. Foi um auto didata que se diferenciava e destacava dos demais conterrâneos. Este seria também o futuro que se avizinhava para Bento Caraça.
Mas a vivacidade do seu espírito e o entusiasmo com que se entregava ao estudo impressionaram a dona da herdade, D. Jerónima Albuquerque, que decidiu encarregar-se da educação de Bento Caraça e levá-lo para sua casa em Vila Viçosa para iniciar os estudos. Assim foi a infância de Bento de Jesus Caraça, que viria a tornar-se uma das figuras mais proeminentes da sua geração. Podemos dizer que em boa hora apareceu um José Percheiro que descobriu e incentivou um intelecto ímpar.
Relativamente à sua obra científica conhecida, mas não suficientemente divulgada, outros se encarregarão de o fazer. Gostava agora de lembrar o seu espírito simples, humanista e de solidariedade para com o seu semelhante. Recordo com alguma emoção a sua figura de sorriso afável e olhar brilhante, sempre pronto a dialogar e ajudar todos os que se lhe dirigiam, dando conselhos, ajuda, ou orientação nos mais diversos assuntos, quer fossem de saúde, para quem precisava de tratamentos médicos em Lisboa, quer ajuda monetária, ou simples conversas, que ele tanto gostava de manter com o povo e a todos atendia com simplicidade e humanidade.
Os seus pais quando saíram da herdade da Casa Branca foram viver com a família para Aldeias de Montoito. E ele, que visitava os pais com alguma regularidade e tinha sempre muitas visitas de pessoas da terra, reunia-se muitas vezes com alguns trabalhadores rurais, em casa de sua irmã mais nova, Filomena Caraça, onde distribuía gratuitamente alguns livros, nomeadamente da célebre Biblioteca Cosmos (que ele criou e dirigiu até à sua morte) a esses companheiros que, por sua vez, depois de lerem os livros, os trocavam entre si, havendo intercâmbio de conhecimentos adquiridos e posterior troca de ideias.
Podemos assim deduzir que aqui se cultivou também «o despertar da alma colectiva das massas». Recordo com muita saudade a figura maravilhosa do meu tio, o seu olhar penetrante, exigente e, ao mesmo tempo, humilde no seu relacionamento do dia-a-dia. Quis o destino que fosse eu, seu sobrinho, que ele trouxe para sua casa para estudar em Lisboa, estando com a nossa tia Teodora (que sempre o acompanhou e naquele preciso momento se encontrava comigo junto ao seu leito) que ele para mim olhasse quando balbuciou umas palavras que interpretámos como sendo «tempo a menos…» fechando depois os olhos no seu último minuto de vida, naquela tarde fatídica na rua Almeida e Sousa nº 63, 1º esquerdo. Chamei imediatamente a tia Cândida, sua Mulher, o Professor Pulido Valente e Manuel Mendes, que estavam na sala ao lado e que vieram correndo. Terminava assim abruptamente uma vida de que tanto havia a esperar. Fica-nos o seu exemplo de cidadão exemplar e homem íntegro. Jamais esquecerei este momento de profunda tristeza.