por Ruy Luís Gomes
A Gazeta de Matemática, ao completar-se um ano de actividade, sente como seu primeiro dever, e bem doloroso ele é, o de recordar perante os seus leitores, na maioria jovens estudantes das nossas Universidades, a forte personalidade de Bento de Jesus Caraça, querido companheiro de trabalho e um dos fundadores desta revista (1).
E se é certo que, como professor do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras e através da larga difusão dos seus livros – de ensino e de divulgação científica – Bento Caraça deu uma contribuição importante para a formação profissional da nossa juventude, no entanto, em meu parecer, foi pela ampla projecção educativa da sua vida exemplar que ele verdadeiramente se afirmou como um autêntico Mestre!
Na verdade, Bento Caraça pertenceu ainda a uma geração que fez a sua própria preparação, no domínio da Matemática, numa época em que as nossas Escolas Superiores estavam inteiramente enformadas pelo velho e desastroso conceito de que se pode ser um grande professor universitário sem nunca se ter patenteado, na análise exaustiva de algum problema concreto, a garra ou, pelo menos, o sentido de investigador.
De aluno laureado subia-se, pela mão de professores mais antigos até às culminâncias da cátedra e, uma vez lá, usufruía-se de um direito de propriedade, absoluto, em arrogante desafio às restrições que o progresso da humanidade lhe tem imposto inexoravelmente no âmbito das coisas materiais. E quantos catedráticos assim viveram e morreram, sem se aperceberem de que estavam traíndo a sua função de profissionais e educadores!
Bento Caraça, fez o seu curso sem nunca lhe ter sido apontado, estou certo disso, como único meio capaz de se chegar a ensinar, matemática ou qualquer outra ciência, o de primeiro aprender – num verdadeiro e estimulante ambiente de trabalho de investigação.
E quantas vezes o ouvi lamentar-se disso mesmo, ao analisarmos as grandes deficiências da nossa própria preparação e, o que é mais importante, as causas profundas do baixo nível científico e ético das universidades portuguesas.
Bento Caraça não foi, pois, um investigador, mas superando o meio em que foi educado e lançando-se desde muito novo nas tarefas do ensino, em breve se juntou aos que deram o primeiro passo para fazer triunfar nas nossas Escolas Superiores uma nova concepção da vida universitária.
Fundou com António Monteiro, Hugo Ribeiro, José Paulo e Manuel Zaluar a Gazeta de Matemática, ajudou a constituir a Sociedade Portuguesa de Matemática e, assim, facilitando o caminho aos mais novos, participou efectivamente na obra de renovação da cultura matemática iniciada em Portugal há cerca de 10 anos.
Vencendo as suas próprias dificuldades e tirando delas um ensinamento para facilitar a formação profissional da juventude, contribuiu em larga medida para que a investigação se tornasse uma primeira realidade, e, procedendo assim, deu um conteúdo real e progressivo à sua missão de educador.
Na verdade, que é um educador? É precisamente “aquele que propõe à juventude uma certa hierarquia de valores” (Julien Benda).
E a sua orientação é boa ou má, quero dizer, útil ou nociva ao interesse nacional e à causa mais ampla do progresso da humanidade, conforme a escala de valores que escolhe e aplica através da sua própria actuação de educador.
Neste sentido, Bento Caraça foi um grande educador!
Alinhando com aqueles que pretendem transformar as nossas Universidades em Centros de Investigação e verdadeiras escolas de trabalho, escolheu como primeiro valor, no domínio da sua actividade de professor, a subordinação dos seus interesses imediatos a um interesse superior – o da preparação profissional da juventude.
E sacrificando tudo, desde a cátedra, de que foi afastado, até às exigências de uma saúde precária, aos grandes valores morais – inteireza de carácter, sentimento de solidariedade e coerência de princípios – deu-nos a todos a melhor lição da sua vida.
O seu exemplo pertence ao património moral da nossa Pátria. O povo português nunca o esquecerá!
(1) Juntamente com António Monteiro, prof. da Universidade do Rio de Janeiro, Hugo Ribeiro, prof. da Universidade de Berkeley (Califórnia), José Paulo, prof. do Liceu de Lamego, Manuel Zaluar, bolseiro em Paris. Estas situações referem-se à actualidade. Gazeta de Matemática, números 37-38, Agosto-Dezembro de 1948, pág. 4.